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sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Ana Neri


ANA NÉRI  

1814 - 1880

Faltavam doze dias para o Natal do ano de 1814, quando uma menina, depois chamada pelos pais de Ana, nasceu em terras brasileiras, mais precisamente em Vila Cachoeira do Paraguassu, na Bahia.
Casando-se muito jovem e ficando viúva aos trinta anos, do Capitão-de-Fragata Isidoro Antônio Néri, Ana Justina Ferreira criou três filhos: Isidoro Antônio Néri Filho e Justiniano de Castro Rebelo, ambos médicos militares, e um cadete, Pedro Antônio Néri, todos convocados para a Guerra do Paraguai.
Como Florence Nightingale, Ana vinha de uma família distinta e de posses, possibilitando-lhe, assim, ter uma boa educação e instrução. Seguindo o exemplo de suas precursoras, Ana queria abraçar a vida de corpo e alma. Conhecer e acompanhar os seres humanos nos seus momentos de verdade. Nos seus momentos de dor.

Era mais um dia de despachos no Palácio do Governo. A correspondência chegava pontual e numerosa como sempre. Como de costume, o secretário abria os envelopes selecionando o material a ser lido pelo então Governador da Bahia, Manuel Pinto de Sousa Dantas. Remetente: Ana J. F. Néri. Deve ser mais algum pedido particular, algum problema a ser resolvido para algum conterrâneo baiano, pensou o Governador. Mas finalizada a leitura da carta, percebeu ser digna de muita consideração. Eis o teor da mesma:

Ex.mo Sr.

Tendo já marchado para o exército dois de meus filhos, além de um irmão e outros parentes, e havendo se oferecido o que me restara nesta cidade, aluno do sexto ano de Medicina, para também seguir a sorte de seus irmãos e parentes na defesa do país, oferecendo seus serviços médicos, como brasileira, não podendo resistir à separação dos objetos que são caros, desejava acompanhá-los por toda parte, mesmo no teatro da guerra, se isso me fosse permitido; opondo-se a esse meu desejo, a minha posição e o meu sexo me impedem, todavia, que eu ofereça meus serviços em qualquer dos hospitais do Rio Grande do Sul onde se façam precisos, com o que satisfarei ao mesmo tempo aos impulsos de mãe e aos deveres de humanidade para com aqueles que ora sacrificam suas vidas para honra e brio nacionais e integridade do Império.
Digne-se V. Excelência de acolher benigno este meu espontâneo oferecimento ditado tão-somente pela voz do coração.

Bahia, 06 de agosto de 1865

Era mais um voluntário. Ou melhor, uma voluntária, oferecendo seus conhecimentos, sua boa vontade e dedicação ao Exército Brasileiro, aos defensores da Pátria, para amenizar os sofrimentos decorrentes da luta.
Era o ano de 1865, da discórdia política e conseqüentes baixas em exércitos vizinhos. Paraguai, Brasil, Argentina e Uruguai, viram-se envolvidos em lutas que duraram cinco anos. Para essa guerra, com exceção da marinha, o Brasil não estava convenientemente equipado. Faltava um exército numeroso. O mesmo notava-se nos serviços médicos. O serviço de saúde ressentia-se da falta de médicos-cirugiões, farmacêuticos e enfermeiros.

Os hospitais de sangue tinham de acompanhar os batalhões empenhados no luta. Eram, por isso, hospitais de campanha - e isto evidencia seu caráter de emergência - instalados em barracas e sempre mal providos de recursos. A falta de auxiliares era enorme. Os próprios médicos e farmacêuticos tinham de ser também enfermeiros muitas e muitas vezes. Era, além disso, preciso recorrer a soldados sem nenhuma prática, para cuidar dos feridos e assistir aos doentes.

As condições sanitárias dos hospitais não eram nada promissoras. O corpo de saúde do exército imperial era pequeno e a pobreza de material extrema. Qualquer ferimento podia ser mortal, por imperícia do cirurgião ou penúria da farmácia. O confinamento, a umidade, a promiscuidade, a falta de higiene faziam inevitáveis doenças mortais como a gangrena.

As funções de enfermagem eram relegadas a um plano doméstico ou religioso, sem nenhum caráter técnico ou científico. Até então eram apenas homens que serviam de enfermeiros nos hospitais militares. E será nos hospitais improvisados, construídos sob ordens do então Mar. Luís Osório, nas cidades de Corrientes, Humaitá e Assunção, que uma mulher mostrará toda sua abnegação e piedade, tornando-se o símbolo da enfermeira do Brasil.

Quando eclodiu a guerra em fins de 1864, Ana contava com cinqüenta anos. Viúva e mulher de posses, ela estava disposta a acompanhar os soldados brasileiros em cada passo por terras estrangeiras. Sentia-se, desse modo, participante dos acontecimentos em que seus filhos também estavam envolvidos: um na ativa militar e os outros dois na prática de estudos de Medicina.

Da luta também participavam Manuel Jerônimo Ferreira e Joaquim Maurício Ferreira, ambos oficiais do exército, e irmãos de Ana. Um sobrinho também já seguira para a frente como voluntário da Pátria, morrendo em combate.
Pouco sabemos de sua vida particular e, numa tentativa de aprofundar nossos conhecimentos, ficamos a pensar quais teriam sido seus verdadeiros sentimentos. Teria ela decidido oferecer-se como enfermeira participando, assim, de uma das mais perigosas e insensatas atividades humanas, se não tivesse nela seus filhos? Não teria sido unicamente seu amor de mãe a força propulsora da coragem de ver de perto a guerra que seu País então enfrentava? Ou , quem sabe, teriam sido ambos sentimentos de amor materno e solidariedade aos soldados brasileiros?

Todos os dados que pudemos colher sobre sua vida nos levam a crer que sim. Amor materno e amor pátrio encontraram seu melhor representante na pequena figura que circulava ativamente nos principais locais onde os brasileiros lutavam.
Aceito o seu oferecimento, embarcou Ana Néri no dia 13 de agosto de 1865 para os campos de batalha. Nunca tendo antes deixado a Bahia, Ana abandonou o conforto de seu lar, partindo para Corrientes, seu primeiro posto de atendimento e onde havia, por essa época, cerca de seis mil soldados internados e uma poucas irmãs de caridade, da Ordem de S. Vicente de Paulo. Daí passou ao Salto, Humaitá, Curupaiti e Assunção. Montou com seus próprios recursos e na própria casa em que morava, uma enfermaria limpa e modelar e aí trabalhou abnegadamente, até o fim da guerra. Onde não havia hospitais, improvisava um. Tão querida se tornou dos oficiais e soldados, que todos lhe chamavam "mãe".
Ela venceu preconceitos, desprezou conselhos, enfrentou mil desconfortos de viagens. Viu-se, após longos dias de ansiedades, entre os batalhões dos voluntários da Pátria e dos soldados nacionais, que se batiam em defesa do Brasil. Era de vê-la, num acanhado hospital de campanha, quase sem tempo de alimentar-se ou repousar, cuidando de feridos e enfermos, desvelada e caridosa, paciente e maternal.
Enquanto, não muito longe, estrondeava o combate, os canhões reboavam, os clarins transmitiam ordens de comando, os tambores rufavam frenéticos e os comandantes, lutando também, exaltavam o ânimo dos soldados aos toques de avançar, a enfermeira Ana Néri, dirigindo outros enfermeiros e atendendo aos feridos que chegavam carregados em padiolas, multiplicava-se em cuidados, atenções e trabalhos, entre lamentos, gemidos e sangue.
Balas inimigas silvavam por cima da cobertura de lona do hospital. Muitas perfuravam os panos e atravessavam o recinto, ferindo os já feridos, ou matando os agonizantes. Entretanto, a valorosa patrícia não se intimidava. Prosseguia no seu arriscado, comovente e vaidoso mister de ânimo forte. Estava servindo a Pátria na proteção a seus defensores; e achava-se colocada à altura de seus dois filhos médicos, que também se tinham apresentado como voluntários para servir nos hospitais de sangue. Honrava-se ela de seus filhos, e estes se orgulhavam da sua progenitora, prestimosa, caritativa, resoluta e patriota.
                                                                  
Dedicação, desvelo, piedade, humanitarismo, carinho, todos esses adjetivos e outros mais que lhe foram atribuídos. Pensava, curava, cerrava as pálpebras dos moribundos, levando-lhes palavras de consolação e enxugando suas lágrimas. Sua dedicação era tal que, caso não tivesse lugar nos hospitais, levava feridos à sua residência. E assim, não havia quem não a conhecesse.
Segundo ela, só voltaria depois da completa derrota do inimigo, e assim cumpriu. Regressando com o pesar do falecimento de um dos seus filhos, mas sem imprecar contra a desgraça e mal dizer a luta que lhe roubara um pedaço do seu corpo e alma, escondia as lágrima e, sorrindo, para as glórias da Pátria, abençoava o dever que assim a separava de um filho. Exemplo de mãe e de virtudes cívicas, seu corpo parecia pequeno para alma tão grande, mas ele era apenas uma forma de mostrar um espírito gigantesco.

De volta a Pátria, recebeu homenagens nacionais. Na Bahia, as mulheres ofereceram-lhe uma coroa de louros cravejada de brilhantes. Foi condecorada com medalhas de Prata, Humanitária e da Campanha e recebeu uma pensão vitalícia do imperador. Com esse dinheiro educou quatro órfãos de guerra, cujos pais caíram em campos de batalha no Paraguai.
Faleceu aos 65 anos de idade, a 20 de maio de 1880, sendo enterrada no Cemitério de São Francisco Xavier no Rio de Janeiro. Foram-lhe prestadas diversas manifestações de apreço em várias províncias. Seu retrato de corpo inteiro, obra de Vitor Meirelles, figura em lugar de honra no paço municipal de Salvador. A primeira escola oficial de enfermagem de alto padrão, fundada por Carlos Chagas em 1923, tem, desde 1926, o seu nome. Em 5 de fevereiro de 1979 seus restos mortais foram transladados para sua terra natal.
Considerada a precursora da Cruz Vermelha Brasileira, foi cognominada de "MÃE DOS BRASILEIOS", figurando nas páginas da nossa história como um dos mais belos exemplos de abnegação, caridade e amor à Pátria.


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