sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Intervenções com familiares no campo psicossocial


INTERVENÇÕES COM FAMILIARES NO CAMPO PSICOSSOCIAL

O acometimento de doença mental no membro de um núcleo familiar tende a se transformar numa realidade permeada por sofrimento e dor. Tal evento representa uma crise, que é expressa pela gravidade de sua manifestação e devida ao "...longo tempo de duração dos sintomas, os fracassos sociais dos pacientes, as dificuldades de comunicação e interação..." produzindo, no portador individual e nos familiares, vivências de frustração e desespero e "...um convite para um progressivo isolamento da vida comunitária." (MELMAN, 1998).

Este quadro desalentador evidencia, entre outros, um sentimento de culpa dos pais em relação aos filhos e destes com relação aos pais. Via de regra, os prestadores de assistência também responsabilizam os familiares como os produtores de relações conflitivas e adoecedoras.


Estrutura familiar e as ações em saúde
O núcleo familiar ou família nuclear2 ocidental moderna é responsável pela educação, formação, identificação e ajuste de qualquer desvio ou transtorno dos filhos. A ruptura de expectativas que tendem à normalidade (nascer, crescer, estudar, namorar, casar, procriar, ter emprego estável) constitui um fator de angústia e sofrimento.

Esta condição caracteriza as sociedades industriais, que nasceram no final do século XVIII, na consolidação do modo capitalista de produção (ARIÉS, 1981), cuja referência de normalidade é a capacidade das pessoas estarem incluídas no jogo das trocas sociais, isto é, aderidas ao sistema produtivo.

Coerente ao processo de responsabilização e nuclearização da família, as intervenções junto aos familiares de portadores de doença mental vêm sendo construídas, implementadas e definidas pelo viés da normatização ou desvio, pela culpabilização ou indiferença institucional, pelo isolamento profilático por meio da internação psiquiátrica ou isolamento social via abandono.

Sob a égide da ciência positiva, o olhar prevalente para o fenômeno do adoecimento mental focaliza os sintomas, conflitos, problemas na comunicação, as desabilidades efetivas, cognitivas, laborativas e relacionais, ou seja, nesses duzentos anos de psiquiatria, a assistência ao doente individual tem reservado pouco espaço para a incorporação e implicação afetiva ou operativa dos familiares no decurso do tratamento de seu ente consangüíneo.

Isto porque o modelo hospitalar hegemônico no ocidente reforça a necessidade do isolamento da doença (e, conseqüentemente, do seu portador) para melhor observá-la, estudá-la e tratá-la. Este é o projeto psiquiátrico e o seu objeto de intervenção: a doença (SILVA et al., 2000).

Coerentemente, ao isolamento da doença adere-se o isolamento do sujeito doente, o seu afastamento do núcleo de referência familiar, o empobrecimento das relações e a dificuldade de experimentar vivências enriquecedoras.

Tal mecanismo retroalimenta um velho mito no campo da saúde mental, que é a suposta acomodação dos familiares frente ao sofrimento mental (ou a sua autodesobrigação frente ao tratamento), assim como a desobrigação autorizada pela instituição prestadora de assistência (uma vez que a impede de acessar o intramuros hospitalar), uma roda viciosa e viciada que tende à manutenção do estatuto da culpa e abandono.

A psiquiatria tem contribuído muito no campo da pesquisa psicofarmacêutica. Entretanto, após tratar a doença, restam: o doente, o pós-crise, a vida cotidiana, a convivência em casa, com a vizinhança, o jeito bizarro de ser e viver, a dificuldade na obtenção ou manutenção de trabalho, a impossibilidade de lazer, etc.

O manejo das situações onde tal humanidade da população-alvo está a descoberto pode buscar amparo num campo ampliado da concepção do processo saúde-doença mental e seu tratamento. Este é o campo psicossocial.

2 Família nuclear é um tipo de estrutura familiar vista nas sociedades industrializadas e consiste de duas gerações: pais e filhos (TAYLOR, 1992)
Nas sociedades complexas cresce o número de grupos humanos que não atendem aos critérios dos vínculos legais ou consangüíneos tradicionais e que identificam-se como famílias. (TAYLOR, 1992)

O que é o Campo Psicossocial?
Estudos epidemiológicos desenvolvidos no Brasil, Estados Unidos e Inglaterra, entre outros, demonstram os ganhos e a eficácia das ações e experiências clínicas que buscam a estabilização dos sintomas, a redução das recaídas e das reinternações psiquiátricas através do uso de medicamentos. Entretanto, evidenciam também a necessidade de "estratégias de envolvimento da família" para que o tratamento ou o processo terapêutico obtenha êxito (MELMAN, 1998).

Tal visão acredita que os familiares necessitam, da mesma forma que o portador individual da doença mental, de acolhimento e tratamento e deve ser incluída no projeto terapêutico.

Portanto, o envolvimento de familiares no tratamento da doença mental impõe-se como um instrumento fundamental e requer o rompimento do olhar diagnosticador de sintomas e culpabilizador para um olhar mais solidário, que compartilha pesares e saberes na construção de dispositivos que a instituição de prestação de assistência disponibiliza para a população-alvo.

A instituição que afirma que o adoecimento mental necessita de dispositivos complexos para ser tratado está conectada à tendência mundial no campo das políticas públicas, que investem, ao mesmo tempo, na intervenção técnica e na articulação da instituição com a população-alvo. Este é o campo psicossocial, que segundo SARACENO (1997), incorpora a dimensão social à dimensão biológica e psicológica do processo saúde-doença.

Neste sentido, a dimensão social não significa as variáveis socioeconômicas da população alvo, mas a forma como esta população (indivíduo e familiares) pode viver e se apropriar do seu processo de adoecimento.

Tal processo supõe um movimento de conscientização e superação das formas tradicionais de conduzir o tratamento, tanto da perspectiva da equipe, como da população-alvo.
objetivos do campo psicossocial

ampliar a capacidade do portador de doença mental e de seus familiares:
  de entender e apropriar-se do processo saúde-doença mental
  agenciar soluções no campo afetivo, material e social e participação na vida política e jurídica.


A instituição prestadora de assistência precisa, então, rever sua organização e viabilizar uma outra ordem interna, permitindo, ao mesmo tempo:
  a reestruturação dos projetos de intervenção, não mais definidos sob a ótica dos modelos médico e biológico, mas articulado e coletivizado pela equipe multidisciplinar;
  reordenar o processo de trabalho, que rompa a organização exclusivamente médica do serviço, superando a rigidez dos papéis profissionais específicos e delegando a cada profissional autonomia para a condução do projeto terapêutico;
  ser flexível e permeável, buscando o parâmetro irredutível do bem-estar da população-alvo ao invés de subordiná-la à ordem institucional rígida e regida por rotina alienantes e excludentes.

As condições necessárias para a estruturação de um serviço com bases psicossociais estão em íntima relação com:
  a atitude de participação na gestão do serviço (do usuário, do núcleo familiar, com extensão à comunidade);
  a integração da equipe (interna e com a rede de serviços) e
  com uma atitude emancipatória dos profissionais com relação à clientela.

Assim, a equipe de saúde e a (o) enfermeira (o) devem:
  desenvolver em si próprios a capacidade de escutar;
  ter disponibilidade para pensar e sustentar o vínculo que a clientela estabelece com o serviço nos âmbitos da coexistência social (demandas de ordem jurídica, de sociabilidade e agremiação, lazer, habitar e coabitar espaços privados ou públicos).


Os serviços comunitários vêm recebendo incentivos por meio de Portarias do Ministério da Saúde que regulamentam e financiam suas ações.

As parcerias com a sociedade civil vêm se disseminando por meio das Associações de usuários e familiares de serviços de saúde mental (cerca de 50 no país que têm lugar assegurado nos Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde e no Conselho Federal de Reforma Psiquiátrica do Ministério da Saúde.

O que oferecer aos familiares no campo psicossocial?
 
  um serviço que conte com tal intensidade e potência de intervenção e com parcerias que se localizam na própria comunidade, como as referências religiosas, escolares e jurídicas.
  um campo específico para tratamento, os serviços comunitários, identificados como concepção psicossocial, porque já estão estruturados nos territórios onde a população circula e tem acesso.

Como intervir?
A primeira escolha em caso de detecção de quadro de doença mental é o encaminhamento para avaliação especializada nos serviços comunitários (ambulatório, centro de saúde mental, hospital/dia, centro de atenção psicossocial, núcleo de atenção psicossocial).

A internação psiquiátrica deve ser considerada se esgotados todos os recursos comunitários e os familiares não dispuserem de estrutura (na própria casa) ou infra-estrutura (um serviço de referência) para a contenção da manifestação da doença.

A tabela a seguir, adaptada de SARACENO (1997), auxilia a discriminação, grosso modo, dos níveis de intervenção em saúde mental:
SISTEMA GERAL DE ATENÇÃO PARA A SAÚDE MENTAL
atenção psiquiátrica
atenção primária
atenção comunitária
· diagnóstico psiquiátrico
· manejo de agudização/crise onde não há recurso comunitário
· articulação com o nível da atenção primária e/ou comunitária para acompanhamento dos casos e retorno ao serviço de origem
· formação e supervisão específica
· coleta de dados de interesse específico
· acompanhamento nos hospitais gerais
· trabalho para reduzir a utilização do manicômio como único tratamento
· detecção da demanda e diagnóstico simples
· manejo dos casos simples autolimitantes (depressão leve, reação de ansiedade), epilepsia, alcoolismo, doenças psicossomáticas, idosos
· coleta de dados essenciais
· referência de casos que não podem ser acompanhados neste nível
· detecção da demanda e manejo dos casos: espontâneos e encaminhados pela atenção primária e pelos serviços de psiquiatria
· encaminhamento dos casos que não podem ser acompanhados neste nível
· trabalho com as famílias e comunidade
· apoio e socialização


Atenção:
1. Considerar que a relação entre o serviço de atenção básica com o serviço de referência em saúde mental - comunitário - deve estar definida nas políticas locais de saúde e que os limites de intervenção de um nível ou outro pode ser distendido.

2. Os níveis de atenção são inter-relacionados, articulados e intercambiáveis.
instrumentos que possibilitem avaliar, diagnosticar e encaminhar adequadamente pessoas portadoras de transtornos mentais

A equipe da saúde e a (o) enfermeira (o) devem reconhecer situações que demonstram:
  evidências clínicas de transtorno mental (distúrbios de pensamento, transtornos de humor, etc.)
  retraimento importante da rede social (com perdas significativas no campo escolar, de trabalho, de lazer ou afetivo).

Considerndo que:
  tais informações, colhidas e compartilhadas com os familiares, por si só caracterizam uma intervenção no campo psicossocial e devem ser cuidadosamente acompanhadas e monitoradas pela equipe de saúde.
  as situações que caracterizam um transtorno mental precisam repercutir de forma importante na rede familiar, caso contrário, todas as manifestações afetivas correm o risco de serem tranformadas em doença.
  a falta de acesso a informações e aos serviços pode submeter o portador individual de transtrono mental e sua rede familiar a uma condição de vida desgastante, empobrecida socialmente e constantemente conflituosa.

Os quadros a seguir elencam as situações onde portador individual e a rede familiar estão mais expostos à vigência de transtorno mental severo e que devem ser encaminhados para avaliação especializada. Foram excluídos quadros que evidenciam uso, abuso e dependência de drogas.
EVIDÊNCIAS CLÍNICAS DE TRANSTORNO MENTAL

1. DELÍRIOS ou falsas crenças, não condizentes com o nível de conhecimento do sujeito ou seu grupo cultural e que são mantidas mesmo diante de argumentação lógica ou evidências objetivas em contrário. É um distúrbio do pensamento. Pode se expressar como uma idéia de perseguição, de controle externo (rádio, TV, etc.), como irradiação do pensamento do sujeito para o mundo externo ou o contrário. O conteúdo do pensamento pode ter conteúdo religioso, somático, etc.

2. ALUCINAÇÕES ou falsas percepções relacionadas aos cinco sentidos (tato, audição, olfato, visão, gustação) na ausência de estímulo externo real. As alucinações com conteúdo de perseguição são as mais comuns.

3. AFETO ou expressão de sentimento prejudicados pelas alterações anteriores e pela dificuldade de discriminação com o ambiente e com outras pessoas. Mesmo em quadro estável (sem alucinação ou delírio) o sujeito experimenta dificuldade em descrever o que sente a respeito de si, do mundo, dos acontecimentos e em processar tais sentimentos, com a finalidade de reduzir seus efeitos.

4. VONTADE ou iniciativa prejudicadas pela dificuldade de iniciar, manter ou concluir atividades de trabalho, de estudo, de lazer, afetivas. Tal dificuldade, muitas vezes, é confundida com preguiça ou indiferença, falta de compromisso ou vagabundagem. Pode levar o sujeito e a rede familiar ao retraimento e isolamento social com conseqüente esvaziamento da interação com a vizinhança, na escola, impossibilitando a inclusão ou manutenção do trabalho (TAYLOR, 1992).

5. DEPRESSÃO expressa-se na perda do interesse ou prazer pelas coisas da vida ou atividades habituais, perda de apetite e peso, perturbação do sono, agitação ou retardo das atividades físicas, diminuição da energia com sentimentos de auto-desvalorização e culpa, dificuldade para pensar ou concentrar-se. Persistência de pensamento de morte.

6. MANIA ou excitação aumentada e prolongada. O sujeito acredita que tudo é possível, que todos seus desejos serão atendidos. Pensamento rápido, memória ágil, sentimento exagerado de auto-segurança e falta de temores, que na presença de algum limite pode levar à expressão de atitude hostil. Predomina uma atitude dominadora, extremamente crítica e reivindicatória. Irritável às pequenas frustrações (TAYLOR, 1992).


Ao término da leitura desse texto, a (o) enfermeira (o) deve ser capz de:
  conceituar o que é o campo psicossocial;
  identificar ações que podem ser oferecidas às famílias que possuam membros com transtornos mentais
  conhecer algumas evidencias clínicas de transtorno mental


Autores:
Ana Luisa Aranha e Silva1

Márcia Aparecida Ferreira de Oliveira2
Última Atualização: 9/26/2001 7:47:34 AM

1 Professora Assistente do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da USP
2 Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da USP


Bibliografia

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2a. ed. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1981.

MELMAN, Jonas. Repensando o cuidado em relação aos familiares de paciente com transtorno mental. Dissertação (Mestrado). Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1998.

SARACENO, Benedetto; ASIOLI, Fabrizio; TOGNONI, Gianni. Manual de saúde mental. 2a. ed. São Paulo : HUCITEC, 1997.

SILVA, Ana Luisa Aranha et al. Comunicação e enfermagem em saúde mental - reflexões teóricas. Rev.latino-am.enfermagem. V. 8, no. 5, pp. 65-70, Ribeirão Preto, outubro 2000.

TAYLOR, Cecelia Monat. Fundamentos de enfermagem psiquiátrica da Mereness. 13a. ed. Porto Alegre : Artes Médicas, 1992.

Nenhum comentário:

Postar um comentário